Este post surge como um longo comentário ao ótimo post do Leonardo T. Oliveira lá no Euterpe, o qual possui este título (clique nele para acessar a postagem):
O assunto tão bem tratado no texto do Leonardo é da maior importância. Seria produtivo aos interessados que o lessem antes de ler o que segue, e que lessem também os comentários à postagem, que acabaram aprofundando a discussão.
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Vou começar contando duas historinhas, que servirão depois.
No ano passado realizamos aqui em Maringá, eu com outros três pianistas, o ciclo da integral das Sonatas para piano de Beethoven, em um projeto incrível da prefeitura. A maioria das obras foi executada por nós com o uso de partituras, isso porque cada um de nós precisava aprontar uma nova sonata por mês, e não tínhamos tempo de memorizá-las. Por isso, contratamos uma outra pianista da cidade, nossa amiga, para atuar como nossa paginista. Alguns recitais ocorreram normalmente. Num certo dia, quando eu iria tocar a Sonata Op. 22, pouco antes do recital eu disse à paginista que ela não se preocupasse em virar a página ao final do segundo movimento, que eu mesmo faria isso. Minha preocupação era que a movimentação dela (levantar da cadeira e virar a página) pudesse causar qualquer ruído em um momento no qual, depois de um movimento lento e intimista, os sons morreriam e o silêncio assumiria o discurso musical. Mesmo sabendo que ela, por sua competência, não costumava fazer ruídos ao virar as páginas, ainda assim pedi que não virasse naquele ponto, pois mesmo a informação visual dela em pé ao meu lado parecia-me ir contra a necessidade de total ausência de ação física naquele momento quase místico em que o som morre e nasce o silêncio. Esse momento é representado por essa quebra de páginas entre o final do segundo e o início do terceiro movimentos:
Beethoven, Sonata Op. 22 - últimos compassos do 2o. movimento (Adagio con molt'espressione), quebra de página, e compassos iniciais do movimento seguinte (Menuetto) |
Outra história: uns meses depois, recebemos neste mesmo projeto um dos maiores nomes do piano brasileiro na atualidade, Ney Fialkow, que veio para tocar a Sonata Op. 106 "Hammerklavier" (pois desde o início sabíamos que nenhum de nós conseguiria aprontar esta que é, sem dúvida, a maior e mais difícil das sonatas de Beethoven, muito menos tendo tantas outras para estudar em sequência). Na noite em que ele tocou, apenas eu dividi o palco com ele. Pouco antes do recital estávamos no camarim, e ele dava algumas instruções à nossa paginista. Em certo momento, ele disse a ela apontando os últimos compassos do 3o. movimento, Adagio sostenuto: "Bem, aqui acho melhor você não virar a página de imediato. Espere até eu tocar a sucessão de fas que abrem o movimento seguinte, depois você vira. Nós precisamos sentir essa suspensão do arpejo de fa sustenido que depois do silêncio caminha meio tom abaixo nos fas naturais...". Ele se referia a uma situação parecida com a da Sonata Op. 22, mas ainda mais expressiva, devido ao movimento cromático descendente que separa os dois movimentos, e isso após um dos momentos musicais mais profundos de que se tem notícia, que é o Adagio sostenuto desta sonata. O silêncio entre esses dois universos é crucial, é a própria ponte entre eles. Mais uma vez, uma virada de página separava esses dois momentos:
--------------------(quebra de página)--------------------
Beethoven, Sonata Op. 106 "Hammerklavier" - Compassos finais do 3o. movimento (Adagio sostenuto), quebra de página e compassos iniciais da introdução (Largo) do movimento seguinte. |
Em seu post, o Leonardo nos ofereceu um panorama da problemática que envolve diversos fatores, e que alguns comentaristas acabaram por reduzir à questão da "etiqueta na sala de concerto". Como ele mesmo frisou, a questão do "aplaudir ou não aplaudir" é bem mais complexa. E como ele também nos diz, há três principais linhas de pensamento que normalmente são usadas para tentar explicar esta peculiar realidade das salas de concerto, realidade esta relacionada também à etiqueta, mas ainda a outros fatores. A atual configuração do ritual presente em recitais e concertos, e que aparentemente pressiona a platéia a demonstrar altas doses da tal civilidade, pode ser explicada, de acordo com o texto no Euterpe, como:
1) parte de um processo civilizador da história contemporânea e suas etiquetas, 2) resultado de um sincretismo social dos teatros e de um embotado decoro pequeno-burguês em busca de status ou 3) no seu extremo, como parte de um processo de sacralização, de canonização e de engajamento com a ideia de sublime da concepção de música e do ambiente propício para se apreciá-la.
Compreendo que as duas primeiras explicações possam dar conta de abarcar a questão até certo ponto, e que elas explicam no máximo sua superfície. Na minha opinião, entretanto, é a terceira que comporta a grande essência da mesma, e é ela o foco deste texto.
A inefabilidade do silêncio
No texto que deu origem a este, o autor, muito apropriadamente, discorre sobre as relações tonais que se estabelecem entre movimentos em sonatas, por exemplo, e que não admitem ser quebradas pela intervenção de aplausos (ele, inclusive, usa também a Sonata Op. 106 para tratar desta questão). Isso é fato, e já está bem dito lá. Aqui, quero falar de um outro elemento, que se conecta à questão tonal, que diz respeito ao uso do silêncio como discurso.
Percebemos claramente que a partir do desenvolvimento da idéia do sublime em música, e de sua fixação no imaginário musical do século XIX, a música passa a ser concebida como um dos maiores, senão o maior, meios para se buscar atingir este "estado de espírito" que é tão complexo de se descrever, e que certamente não é um mero estado de espírito. Especialmente na música instrumental, mas também fortemente no Lied, a transcendência é almejada, e a música passa a querer falar o que não pode ser dito em palavras. É a partir daí que o discurso musical ganha um status diferenciado, como se necessitasse ser ouvido com uma qualidade de audição e uma dedicação intelectual como nunca antes havia necessitado. Já podemos sentir e perceber muito disso na música instrumental das últimas décadas do século XVIII.
Cada vez mais, a partir de então, as sutilezas de condução do discurso musical aumentam, e especialmente as conexões entre seções, partes e movimentos de peças maiores vão se tornando mais expressivas. Pensemos aí na incrível transição que Beethoven constrói entre os 3o. e 4o. movimentos de sua 5a. Sinfonia: é já uma transição entre dimensões, tal como será a transição acima citada na Sonata Op. 106, construída sobre sonoridades tão sutis que é preciso aguçar a audição e deixar-se imergir nesse ambiente, no qual o tímpano conduz toda a sequência por meio de uma transformação da célula geradora da sinfonia (clique AQUI para ouvir o ponto exato ao qual me refiro):
Da sutileza para o silêncio, o caminho é curto. A maneira como o silêncio é trabalhado como um agente constituinte do discurso musical é cada vez mais patente a partir do Classicismo. Vêm-me à mente alguns exemplos disso, desde Mozart. Um exemplo muito significativo, entretanto, está ao longo do 1o. movimento da Sonata para piano D. 960 de Schubert, onde trinados abissais comentam o aparente lirismo melancólico do primeiro tema, apenas para depois serem cessados por um silêncio ainda mais abissal. Este não é um momento onde se corre o risco de ouvir aplausos fora de lugar, mas se o pianista não deixar o silêncio soar o suficiente, o efeito desastroso para o discurso seria o mesmo. Ouça o primeiro minuto da sonata, onde tudo isso aparece:
O silêncio, aqui, diz muito, tanto quanto os sons que o precederam e sucederam. E como vimos nas duas historinhas que contei no início, muitas vezes o silêncio funciona não como seccionador de duas partes, mas como conector das mesmas. Qualquer ruído nesses pontos vai contra o discurso da música. Em um dos comentários em seu próprio post, o Leonardo disponibiliza um link que leva ao ponto em que Claudio Abbado, após mais de 70 minutos de música de Mahler, segura os aplausos da platéia por um tempo aparentemente longo demais, mas que é o tempo que ele sentiu necessário para que o discurso musical cessasse em todos os níveis, não apenas fisicamente, até que o silêncio passasse a ser apenas ausência de som novamente, e não mais uma continuidade do discurso (com a permissão do Leonardo, trago este exemplo pra cá. Clique AQUI para ver o ponto exato).
O uso expressivo do silêncio na música revela-se como uma consequência quase extrema do pensamento dos primeiros românticos (neste caso, Beethoven inclusive), que buscavam com os sons a expressão do que estava além das palavras expressar. Uma radicalização da idéia de inefabilidade, sim, pois também o "não-som", o silêncio, passa a expressar isso tudo.
Levando isso em conta, não é de se estranhar a decisão do pianista Glenn Gould, o qual, em certo momento da carreira, deixou as salas de concerto para dedicar-se apenas a gravações em estúdio. Dizem que ele teria alegado que as performances ao vivo eram grandemente prejudicadas pela interferência dos ruídos da platéia, e que o silêncio do estúdio proporcionava o ambiente ideal para interação com a obra musical. Em princípio isso parece um exagero, mas constantemente lembro-me de Gould quando estou tentando me concentrar em um recital - seja tocando ou assistindo - e os ruídos da platéia (tosses, conversas, ruídos de cadeiras, balas e chicletes sendo abertos) insistem em quebrar toda a atmosfera. Nesses momentos inevitavelmente me questiono se o pianista canadense não tinha mesmo toda a razão, muito embora eu também acredite que nenhuma gravação substitua uma apresentação ao vivo. É exatamente por conta deste dilema que existe esta discussão toda sobre tudo que envolve a figura do ouvinte numa sala de concerto.
A inefabilidade do silêncio
No texto que deu origem a este, o autor, muito apropriadamente, discorre sobre as relações tonais que se estabelecem entre movimentos em sonatas, por exemplo, e que não admitem ser quebradas pela intervenção de aplausos (ele, inclusive, usa também a Sonata Op. 106 para tratar desta questão). Isso é fato, e já está bem dito lá. Aqui, quero falar de um outro elemento, que se conecta à questão tonal, que diz respeito ao uso do silêncio como discurso.
Percebemos claramente que a partir do desenvolvimento da idéia do sublime em música, e de sua fixação no imaginário musical do século XIX, a música passa a ser concebida como um dos maiores, senão o maior, meios para se buscar atingir este "estado de espírito" que é tão complexo de se descrever, e que certamente não é um mero estado de espírito. Especialmente na música instrumental, mas também fortemente no Lied, a transcendência é almejada, e a música passa a querer falar o que não pode ser dito em palavras. É a partir daí que o discurso musical ganha um status diferenciado, como se necessitasse ser ouvido com uma qualidade de audição e uma dedicação intelectual como nunca antes havia necessitado. Já podemos sentir e perceber muito disso na música instrumental das últimas décadas do século XVIII.
Cada vez mais, a partir de então, as sutilezas de condução do discurso musical aumentam, e especialmente as conexões entre seções, partes e movimentos de peças maiores vão se tornando mais expressivas. Pensemos aí na incrível transição que Beethoven constrói entre os 3o. e 4o. movimentos de sua 5a. Sinfonia: é já uma transição entre dimensões, tal como será a transição acima citada na Sonata Op. 106, construída sobre sonoridades tão sutis que é preciso aguçar a audição e deixar-se imergir nesse ambiente, no qual o tímpano conduz toda a sequência por meio de uma transformação da célula geradora da sinfonia (clique AQUI para ouvir o ponto exato ao qual me refiro):
Beethoven, Sinfonia nr. 5 - Final do 3o. movimento, a partir do compasso 324, parte dos tímpanos na transição para o 4o. movimento |
Da sutileza para o silêncio, o caminho é curto. A maneira como o silêncio é trabalhado como um agente constituinte do discurso musical é cada vez mais patente a partir do Classicismo. Vêm-me à mente alguns exemplos disso, desde Mozart. Um exemplo muito significativo, entretanto, está ao longo do 1o. movimento da Sonata para piano D. 960 de Schubert, onde trinados abissais comentam o aparente lirismo melancólico do primeiro tema, apenas para depois serem cessados por um silêncio ainda mais abissal. Este não é um momento onde se corre o risco de ouvir aplausos fora de lugar, mas se o pianista não deixar o silêncio soar o suficiente, o efeito desastroso para o discurso seria o mesmo. Ouça o primeiro minuto da sonata, onde tudo isso aparece:
Schubert - Sonata D. 960, 1o mov. - Sviatoslav Richter
O silêncio, aqui, diz muito, tanto quanto os sons que o precederam e sucederam. E como vimos nas duas historinhas que contei no início, muitas vezes o silêncio funciona não como seccionador de duas partes, mas como conector das mesmas. Qualquer ruído nesses pontos vai contra o discurso da música. Em um dos comentários em seu próprio post, o Leonardo disponibiliza um link que leva ao ponto em que Claudio Abbado, após mais de 70 minutos de música de Mahler, segura os aplausos da platéia por um tempo aparentemente longo demais, mas que é o tempo que ele sentiu necessário para que o discurso musical cessasse em todos os níveis, não apenas fisicamente, até que o silêncio passasse a ser apenas ausência de som novamente, e não mais uma continuidade do discurso (com a permissão do Leonardo, trago este exemplo pra cá. Clique AQUI para ver o ponto exato).
O uso expressivo do silêncio na música revela-se como uma consequência quase extrema do pensamento dos primeiros românticos (neste caso, Beethoven inclusive), que buscavam com os sons a expressão do que estava além das palavras expressar. Uma radicalização da idéia de inefabilidade, sim, pois também o "não-som", o silêncio, passa a expressar isso tudo.
Levando isso em conta, não é de se estranhar a decisão do pianista Glenn Gould, o qual, em certo momento da carreira, deixou as salas de concerto para dedicar-se apenas a gravações em estúdio. Dizem que ele teria alegado que as performances ao vivo eram grandemente prejudicadas pela interferência dos ruídos da platéia, e que o silêncio do estúdio proporcionava o ambiente ideal para interação com a obra musical. Em princípio isso parece um exagero, mas constantemente lembro-me de Gould quando estou tentando me concentrar em um recital - seja tocando ou assistindo - e os ruídos da platéia (tosses, conversas, ruídos de cadeiras, balas e chicletes sendo abertos) insistem em quebrar toda a atmosfera. Nesses momentos inevitavelmente me questiono se o pianista canadense não tinha mesmo toda a razão, muito embora eu também acredite que nenhuma gravação substitua uma apresentação ao vivo. É exatamente por conta deste dilema que existe esta discussão toda sobre tudo que envolve a figura do ouvinte numa sala de concerto.
Aplausos como fragmentação e como auto afirmação
O ruído, de qualquer natureza, num ambiente de concerto, pode funcionar como um fragmentador do discurso musical, e maior é a interferência quanto maior for a preocupação do compositor com a integralidade e integridade do discurso como um todo. Os aplausos, mais do que um ruído ocasional e um incômodo auditivo, quando oferecidos na hora errada representam a revelação de que os ouvintes não entenderam, não captaram ou não se preocuparam com o discurso musical, e isto é fatalmente incômodo para quem está no palco lutando para que a idéia de um todo se mantenha. Quanto mais compositor e intérprete (s) abordam o fazer musical como meio de algum tipo de transcendência, maior será o incômodo causado por qualquer tipo de interferência nesse processo. Num contexto assim, o aplauso funciona como uma manifestação anti-sublime, no sentido de que constitui a representação máxima da situação física e terrena de pessoas assistindo a uma apresentação musical, enquanto no palco o sublime, o não-terreno, era almejado. Não sei dizer se ele pode ser alcançado, mas sem dúvida só pode ser buscado a partir de um ambiente onde a música fale mais alto, e apenas ela.
Muitos anos atrás (lá vai outra historinha) tive o imenso prazer de assistir, no saudoso Teatro Cultura Artística em São Paulo, a um recital do excelente Matthias Goerne cantando o ciclo Winterreise de Schubert. Antes do início, foi anunciado que o cantor pedia que a platéia não fizesse ruídos ao longo do recital, tomando especial cuidado ao acompanhar os poemas impressos no programa, e que não houvesse aplausos ao final. Eu nunca, até então, havia visto algo assim num recital. Mas assim que o anúncio terminou, esses pedidos do Goerne fizeram todo o sentido para mim. Eu, particularmente, sempre me incomodo ao extremo com barulhos em concertos, e, além disso, depois pensei: como pode haver aplausos depois de Winterreise? E, de fato, depois daquela jornada, maravilhosamente conduzida pelo duo, não havia possibilidade de aplausos. Aplausos para quê? A música estava feita, a mensagem estava passada, os artistas deram seu melhor. O ciclo caminha num grande arco descendente, acompanhamos o protagonista caminhar para terrenos físicos e psicológicos cada vez mais áridos e sombrios, e ele se encerra num completo anti-clímax. Querer aplaudir após 70 minutos de Winterreise significa querer auto afirmar-se na condição de ouvinte diferenciado, como quem quer dizer em alto e bom som: "Eu aguentei quieto esse tempo todo, eu gosto de Schubert, eu sei que isso tudo foi bom, eu preciso que todos saibam disso, eu preciso que o cantor perceba que eu entendi!" Ou é isso ou a pessoa simplesmente não entendeu a profundidade do que acabou de lhe passar pelos ouvidos, não entendeu que o silêncio é o único arremate possível àquela jornada, e a necessidade de aplaudir acaba surgindo como um eco da etiqueta da sala de concerto, ou seja, aplaudir qualquer coisa quando o som finalmente cessar. Se um intérprete do naipe de Goerne abre mão dos aplausos, isso decorre da valorização da música como algo que está acima dele mesmo, pois é aquela música que não pede aplausos. Assim, mesmo que tenhamos o ímpeto de homenagear o trabalho de um grande artista com nossos aplausos, não deveríamos jamais nos incomodar em não aplaudir em casos como este, pois a maior homenagem ao artista é nossa presença em sua apresentação, e a maior homenagem à música que pede o silêncio é não interrompê-lo.
A enxurrada de músicas que terminam em anti-clímax ao longo do século XIX nos mostra o quanto tantas e tantas vezes os compositores lidavam com a idéia de que a melhor homenagem à música é muitas vezes o mero silêncio. Se Liszt em sua juventude exercitava sua vaidade e buscava aplausos para si com obras fogosas, Schumann mais comumente, em seu intimismo, buscava o não-aplauso, escrevendo finais como ESTE, em que a música caminha para pianissimos e morre no meio deles, deixando os ouvintes tantas vezes sem entender se a música realmente terminou.
Muitos anos atrás (lá vai outra historinha) tive o imenso prazer de assistir, no saudoso Teatro Cultura Artística em São Paulo, a um recital do excelente Matthias Goerne cantando o ciclo Winterreise de Schubert. Antes do início, foi anunciado que o cantor pedia que a platéia não fizesse ruídos ao longo do recital, tomando especial cuidado ao acompanhar os poemas impressos no programa, e que não houvesse aplausos ao final. Eu nunca, até então, havia visto algo assim num recital. Mas assim que o anúncio terminou, esses pedidos do Goerne fizeram todo o sentido para mim. Eu, particularmente, sempre me incomodo ao extremo com barulhos em concertos, e, além disso, depois pensei: como pode haver aplausos depois de Winterreise? E, de fato, depois daquela jornada, maravilhosamente conduzida pelo duo, não havia possibilidade de aplausos. Aplausos para quê? A música estava feita, a mensagem estava passada, os artistas deram seu melhor. O ciclo caminha num grande arco descendente, acompanhamos o protagonista caminhar para terrenos físicos e psicológicos cada vez mais áridos e sombrios, e ele se encerra num completo anti-clímax. Querer aplaudir após 70 minutos de Winterreise significa querer auto afirmar-se na condição de ouvinte diferenciado, como quem quer dizer em alto e bom som: "Eu aguentei quieto esse tempo todo, eu gosto de Schubert, eu sei que isso tudo foi bom, eu preciso que todos saibam disso, eu preciso que o cantor perceba que eu entendi!" Ou é isso ou a pessoa simplesmente não entendeu a profundidade do que acabou de lhe passar pelos ouvidos, não entendeu que o silêncio é o único arremate possível àquela jornada, e a necessidade de aplaudir acaba surgindo como um eco da etiqueta da sala de concerto, ou seja, aplaudir qualquer coisa quando o som finalmente cessar. Se um intérprete do naipe de Goerne abre mão dos aplausos, isso decorre da valorização da música como algo que está acima dele mesmo, pois é aquela música que não pede aplausos. Assim, mesmo que tenhamos o ímpeto de homenagear o trabalho de um grande artista com nossos aplausos, não deveríamos jamais nos incomodar em não aplaudir em casos como este, pois a maior homenagem ao artista é nossa presença em sua apresentação, e a maior homenagem à música que pede o silêncio é não interrompê-lo.
A enxurrada de músicas que terminam em anti-clímax ao longo do século XIX nos mostra o quanto tantas e tantas vezes os compositores lidavam com a idéia de que a melhor homenagem à música é muitas vezes o mero silêncio. Se Liszt em sua juventude exercitava sua vaidade e buscava aplausos para si com obras fogosas, Schumann mais comumente, em seu intimismo, buscava o não-aplauso, escrevendo finais como ESTE, em que a música caminha para pianissimos e morre no meio deles, deixando os ouvintes tantas vezes sem entender se a música realmente terminou.
Por outro lado, como muito bem lembrou o Leonardo, há ambientes e ambientes, públicos e públicos, e repertórios e repertórios. A ópera, por exemplo, por muito tempo foi sinônimo de diversão e de ponto de encontro entre interessados, que gostavam tanto das pirotecnias vocais eficientes quanto gostavam de arremessar tomates nos cantores que não as conseguiam a contento (isso ocorreu de forma bastante intensa ao longo do século XVIII e até as primeiras décadas do XIX). Num ambiente deste, pode haver preocupação com o discurso musical? Fica claro porque Rossini, por exemplo, escrevia os finais dos números bastante barulhentos, para que soassem por baixo dos aplausos e assovios. Nesse contexto, qualquer número de uma ópera é um evento em si mesmo, pensado para provocar e comportar aplausos efusivos. Além disso, à parte da questão musical, a ópera desde sua origem traz em si a proposta de funcionar como um grande espetáculo, e mesmo o drama wagneriano não foge de tal pressuposto. Assim, não aplaudir os grandes números operísticos acaba consistindo no mesmo absurdo de aplaudir entre movimentos de uma sonata de Beethoven ou entre as canções de um ciclo de Schubert.
Observando todos estes detalhes e tomando consciência do quanto a música recorrentemente exige do ouvinte posturas específicas para que ela desenvolva seu discurso de forma plena, fatalmente chegamos à famosa e desgastada polêmica:
A música erudita é elitista?
Sem querer discorrer muito sobre o assunto, que começa a fugir do tema principal do texto, dou sem rodeios minha opinião pessoal: sim, a música erudita é para alguma elite.
Mas a grande questão é entender que elite seria esta. O assunto não tem nada a ver com dinheiro. Já faz muito tempo que a música de concerto (ou clássica, ou erudita) deixou de ser privilégio da elite econômica. Entretanto, ela continua o sendo de uma elite intelectual, e não há como fugir desta realidade. A música erudita existe para todos, mas nem todos existem para ela. Esta aparente dicotomia pode ser explicada em outras palavras: ouvir esta música é algo que exige um mínimo de conhecimento, boas doses de disposição e concentração, e um contínuo aprimoramento das próprias habilidades de escuta. É necessário uma escuta inteligente, algo muito mais raro do que se imagina, pois mesmo músicos por profissão, recorrentemente, não apresentam a disposição para desenvolvê-la. Escutar inteligentemente é algo que requer vontade, informação e constante treino, e isso, infelizmente, não é para qualquer um.
As ferramentas no mundo contemporâneo estão à disposição de uma grande quantidade de pessoas. Informação e as melhores gravações do planeta consegue-se gratuitamente pela internet. Prefeituras e empresas privadas constantemente promovem concertos de qualidade a preços mais que populares. Bibliotecas públicas oferecem tesouros do conhecimento humano gratuitamente. Inacessibilidade ao conhecimento deixou de ser desculpa há muito tempo. É claro que, em nosso país, por exemplo, há uma quantidade enorme de pessoas que ainda não alcançaram o mínimo de condições sociais, e para elas tudo que fuja ao que é oferecido como cultura de massa consiste num obscuro universo inatingível. Mas não me refiro aos extremos da sociedade. Falo da enorme massa que tem a possibilidade, mas não tem a vontade, e é essa falta de vontade que define quem ouve música erudita e quem não ouve. Pensar em questões de inclusão e de mecanismos para despertar esta vontade, já é outra problemática. Particularmente continuo crendo que falta de vontade em aprender a ouvir é algo bastante pessoal, no fim das contas, na medida em que vejo, como disse, mesmo músicos que tocam música erudita por profissão preferindo ouvir Adele depois de "baterem o ponto". Ouvir inteligentemente é mais difícil até mesmo do que fazer música, muito embora minha convicção seja a de que só faz música realmente bem que é capaz de ouvir com o máximo da inteligência. Ainda uma outra questão que não cabe aqui.
A quantidade de músicos eruditos que precisam ralar muito para pagar as contas no fim do mês é a maior prova de que música erudita não mais guarda qualquer relação com poderio econômico. Constatamos isso também quando vamos a concertos em grandes teatros ou salas, e percebemos que as finas senhoras empoladas lá estão para literalmente "fazer a social", e que a música que acontece no palco nada mais é do que um detalhe neste cenário.
Música empolada?
Falando em empolamento, quero ainda rapidamente discorrer sobre a questão da suposta afetação do universo da música erudita.
Ora, claro que vemos o tempo todo músicos pedantes, divas que se preocupam mais com os vestidos do que com a música. Isso é comum, mas me parece que foi mais comum no passado. Seja como for, músicos assim são apenas uma parcela do todo. O que não se pode confundir é empolamento com reverência.
Os músicos se vestem bem para tocar porque, antes de tudo, há uma reverência para com a própria música, e isso é saudável. Quando se critica a vestimenta dos músicos eruditos, normalmente essa crítica vem de uma profunda falta de conhecimento e mesmo de sensibilidade para com os processos que envolvem a relação do músico com a música. Em linhas gerais, a vestimenta adequada consiste numa grande reverência ritualística a todo o processo que envolve uma apresentação. Em primeiro lugar à música, claro, mas também outras tantas reverências: ao público, ao compositor, aos patrocinadores e, muito importante, uma reverência a si mesmo, a toda sua história de preparo enquanto intérprete, e às incontáveis horas de estudo, ensaios e preparação para se permitir subir ao palco e mediar a relação entre compositor e platéia.
Com exceção de casos bastante isolados, o ritual de vestimenta e de comportamento do músico para uma apresentação é compreendido e mantido devido a todos esses fatores. Querer questionar isso com base em alguma revolta pessoal significa não compreender a profundidade da questão, como disse. Não, meu amigo, não há a menor possibilidade de tocar um concerto de Brahms usando jeans e tênis. Não espere isso de um músico sério, que estuda há anos e anos, e que enxerga seu próprio ritual como algo bastante sagrado. Não, meu amigo, não queira culpar as casacas, os ternos e os vestidos por um suposto afastamento da música erudita do povo, pois fazer isso consiste numa grande desonestidade intelectual, e completa ignorância. Se tal afastamento existe, sinto dizer, boa parte da culpa é do próprio povo.
Em seu texto, o Leonardo fala em soluções para melhorar essa situação toda, como a proliferação de concertos didáticos. Concordo, há sim alternativas, especialmente pensando na formação de público, e elas devem ser consideradas e efetivadas. Mas no ambiente de uma sala de concerto padrão, ali a música deve falar acima de tudo. Aplausos quase sempre são comportados em todo tipo de apresentação, e eles são muito bem vindos pelos músicos, mas há que se ter bom senso e uma certa sensibilidade ao menos, para evitar justamente ir contra o que a própria música está pedindo.
Concluindo
Eu poderia resumir essa falação toda assim:
"Não aplauda na hora errada, respeite a música e o músico. Se você gosta de aplaudir o tempo todo, faça isso na ópera, ou em concertos com programa de música ligeira. Se você se sente oprimido pelo ambiente da sala de concerto, se não sabe quando aplaudir, talvez você precise investir tempo e energia para entender melhor este universo, até chegar ao ponto de você mesmo não admitir que a música seja mutilada por ruídos e aplausos perdidos, e ter certeza do momento certo de deixar correr seus aplausos. Se você acha o mundo da música erudita demasiadamente empolado e não tem paciência para ficar parado em silêncio durante um concerto ou recital, você realmente não entendeu esse contexto, e provavelmente o seu tipo de música é outro, e seu ambiente é outro."
Poderia resumir, mas que graça teria?
***
Atualização:
Caro leitor, se você chegou até o final deste post, parabéns! E peço que leia os comentários, por favor, pois acabou acontecendo uma conversa boa lá, e muitas outras coisas importantes foram ditas, e esclarecimentos foram feitos.
Observando todos estes detalhes e tomando consciência do quanto a música recorrentemente exige do ouvinte posturas específicas para que ela desenvolva seu discurso de forma plena, fatalmente chegamos à famosa e desgastada polêmica:
A música erudita é elitista?
Sem querer discorrer muito sobre o assunto, que começa a fugir do tema principal do texto, dou sem rodeios minha opinião pessoal: sim, a música erudita é para alguma elite.
Mas a grande questão é entender que elite seria esta. O assunto não tem nada a ver com dinheiro. Já faz muito tempo que a música de concerto (ou clássica, ou erudita) deixou de ser privilégio da elite econômica. Entretanto, ela continua o sendo de uma elite intelectual, e não há como fugir desta realidade. A música erudita existe para todos, mas nem todos existem para ela. Esta aparente dicotomia pode ser explicada em outras palavras: ouvir esta música é algo que exige um mínimo de conhecimento, boas doses de disposição e concentração, e um contínuo aprimoramento das próprias habilidades de escuta. É necessário uma escuta inteligente, algo muito mais raro do que se imagina, pois mesmo músicos por profissão, recorrentemente, não apresentam a disposição para desenvolvê-la. Escutar inteligentemente é algo que requer vontade, informação e constante treino, e isso, infelizmente, não é para qualquer um.
As ferramentas no mundo contemporâneo estão à disposição de uma grande quantidade de pessoas. Informação e as melhores gravações do planeta consegue-se gratuitamente pela internet. Prefeituras e empresas privadas constantemente promovem concertos de qualidade a preços mais que populares. Bibliotecas públicas oferecem tesouros do conhecimento humano gratuitamente. Inacessibilidade ao conhecimento deixou de ser desculpa há muito tempo. É claro que, em nosso país, por exemplo, há uma quantidade enorme de pessoas que ainda não alcançaram o mínimo de condições sociais, e para elas tudo que fuja ao que é oferecido como cultura de massa consiste num obscuro universo inatingível. Mas não me refiro aos extremos da sociedade. Falo da enorme massa que tem a possibilidade, mas não tem a vontade, e é essa falta de vontade que define quem ouve música erudita e quem não ouve. Pensar em questões de inclusão e de mecanismos para despertar esta vontade, já é outra problemática. Particularmente continuo crendo que falta de vontade em aprender a ouvir é algo bastante pessoal, no fim das contas, na medida em que vejo, como disse, mesmo músicos que tocam música erudita por profissão preferindo ouvir Adele depois de "baterem o ponto". Ouvir inteligentemente é mais difícil até mesmo do que fazer música, muito embora minha convicção seja a de que só faz música realmente bem que é capaz de ouvir com o máximo da inteligência. Ainda uma outra questão que não cabe aqui.
A quantidade de músicos eruditos que precisam ralar muito para pagar as contas no fim do mês é a maior prova de que música erudita não mais guarda qualquer relação com poderio econômico. Constatamos isso também quando vamos a concertos em grandes teatros ou salas, e percebemos que as finas senhoras empoladas lá estão para literalmente "fazer a social", e que a música que acontece no palco nada mais é do que um detalhe neste cenário.
Música empolada?
Falando em empolamento, quero ainda rapidamente discorrer sobre a questão da suposta afetação do universo da música erudita.
Ora, claro que vemos o tempo todo músicos pedantes, divas que se preocupam mais com os vestidos do que com a música. Isso é comum, mas me parece que foi mais comum no passado. Seja como for, músicos assim são apenas uma parcela do todo. O que não se pode confundir é empolamento com reverência.
Os músicos se vestem bem para tocar porque, antes de tudo, há uma reverência para com a própria música, e isso é saudável. Quando se critica a vestimenta dos músicos eruditos, normalmente essa crítica vem de uma profunda falta de conhecimento e mesmo de sensibilidade para com os processos que envolvem a relação do músico com a música. Em linhas gerais, a vestimenta adequada consiste numa grande reverência ritualística a todo o processo que envolve uma apresentação. Em primeiro lugar à música, claro, mas também outras tantas reverências: ao público, ao compositor, aos patrocinadores e, muito importante, uma reverência a si mesmo, a toda sua história de preparo enquanto intérprete, e às incontáveis horas de estudo, ensaios e preparação para se permitir subir ao palco e mediar a relação entre compositor e platéia.
Com exceção de casos bastante isolados, o ritual de vestimenta e de comportamento do músico para uma apresentação é compreendido e mantido devido a todos esses fatores. Querer questionar isso com base em alguma revolta pessoal significa não compreender a profundidade da questão, como disse. Não, meu amigo, não há a menor possibilidade de tocar um concerto de Brahms usando jeans e tênis. Não espere isso de um músico sério, que estuda há anos e anos, e que enxerga seu próprio ritual como algo bastante sagrado. Não, meu amigo, não queira culpar as casacas, os ternos e os vestidos por um suposto afastamento da música erudita do povo, pois fazer isso consiste numa grande desonestidade intelectual, e completa ignorância. Se tal afastamento existe, sinto dizer, boa parte da culpa é do próprio povo.
Em seu texto, o Leonardo fala em soluções para melhorar essa situação toda, como a proliferação de concertos didáticos. Concordo, há sim alternativas, especialmente pensando na formação de público, e elas devem ser consideradas e efetivadas. Mas no ambiente de uma sala de concerto padrão, ali a música deve falar acima de tudo. Aplausos quase sempre são comportados em todo tipo de apresentação, e eles são muito bem vindos pelos músicos, mas há que se ter bom senso e uma certa sensibilidade ao menos, para evitar justamente ir contra o que a própria música está pedindo.
Concluindo
Eu poderia resumir essa falação toda assim:
"Não aplauda na hora errada, respeite a música e o músico. Se você gosta de aplaudir o tempo todo, faça isso na ópera, ou em concertos com programa de música ligeira. Se você se sente oprimido pelo ambiente da sala de concerto, se não sabe quando aplaudir, talvez você precise investir tempo e energia para entender melhor este universo, até chegar ao ponto de você mesmo não admitir que a música seja mutilada por ruídos e aplausos perdidos, e ter certeza do momento certo de deixar correr seus aplausos. Se você acha o mundo da música erudita demasiadamente empolado e não tem paciência para ficar parado em silêncio durante um concerto ou recital, você realmente não entendeu esse contexto, e provavelmente o seu tipo de música é outro, e seu ambiente é outro."
Poderia resumir, mas que graça teria?
***
Atualização:
Caro leitor, se você chegou até o final deste post, parabéns! E peço que leia os comentários, por favor, pois acabou acontecendo uma conversa boa lá, e muitas outras coisas importantes foram ditas, e esclarecimentos foram feitos.
E aí, Ticiano! :)
ResponderExcluirO seu post é o testemunho genuíno da perspectiva de um artista diante do público na cerimônia do concerto, e um artista verdadeiramente romântico na maneira como incorpora esse repertório!
Você dá exemplos do silêncio na música mas menciona acima de tudo o papel do sublime vinculado a ela, e o que me chama a atenção é que a ideia de sublime seja associada aqui não apenas ao inefável, mas ao *intelecto*, de onde surge o tema do elitismo na música clássica e a sua defesa dos elementos mais apolíneos na cerimônia do concerto.
Você afirma mesmo que a música erudita é de fato elitista, e que a seleção desse elitismo se dá pelo intelecto. Neste ponto o seu texto tem todos os elementos para assumir que está oferecendo um ideal de audição musical, a audição que você já vinha descrevendo: tanto sensível quanto intelectualizada e tomando como modelo o silêncio do concerto. Esse pode ter parecido um movimento que partiu das qualidades intrínsecas da música clássica e que chegou ao modelo de audição que a própria música reivindica, mas pode haver dois problemas nesse caminho.
O primeiro, que é até proposital e consciente, é que esse ideal não vai de encontro ao tipo de audição de todos os ouvintes de música clássica. E o segundo é que de alguma forma esse ideal não compreende a experiência musical mais plena de uma pessoa com a música, que pode oscilar entre a audição sublime e a audição lúdica, a audição concentrada e a audição por osmose, a audição da música por ela mesma e a audição da música conjugada a experiências simultâneas, e que não há nada de errado nessa pluralidade - pelo contrário, ela é natural e todos nós a vivenciamos (com nossos ingressos em concertos ou com nossos fones de ouvido).
Mas vamos às implicações de cada problema. No primeiro caso, talvez o intelecto ainda seja uma segregação muito radical para a arte no que nós reconhecemos que ela tem de "universal". Me lembro de uma vizinha que quando soube que eu gostava de música clássica trazia CDs pra eu ouvir, e ela não entendia muito bem o que se passava naqueles CDs, mas ela se identificava com aquilo, ela se entusiasmou em descobrir alguém que também gostava daquilo: ela amava aquilo. Quem seria eu pra dizer que aquela música não foi feita pra ela? Outro conhecido não entendia nada de teoria musical, mas tinha uma coleção de CDs monstruosa, especialmente de música de câmara e solista. Acontecia que mesmo sem ter a capacidade de uma audição intelectualizada, ele desenvolveu uma sensibilidade artística de saber julgar muito bem a linguagem de cada intérprete, de modo que se ele recomendava algo, você ia lá ouvir e descobria que era bom mesmo. Eu já me vi tentado a definir algumas prerrogativas artísticas intrínsecas à própria música clássica - e ainda divulgo essa visão, porque acho que ela é enriquecedora a quem se interessa -, mas tenho me dado conta de que a relação das pessoas com a música, se for honestamente descrita e não normatizada, é sempre bem mais variada e ampla, e talvez o critério do alcance da própria música clássica não seja o intelecto, mas a beleza e o que favorece a percepção dessa beleza às pessoas. Porque note que esse critério da beleza já basta pra defender a essência do que julgamos importante na música: o conteúdo da forma, as condições de ouvir a música melhor, o espírito de descoberta de conhecimento para revelar novas belezas na mesma música, até mesmo a função do intelecto em nos tornar ouvintes melhores, etc. Perder a beleza por qualquer motivo, portanto, é que é a segregação da música clássica, e é uma perda que pode se dar por vários motivos, mas que também pode ser driblada por vários caminhos.
Sobre o segundo problema, ele diz respeito diretamente ao assunto da cerimônia de concertos. Acontece que cá estou eu, sendo capaz de ouvir música de maneiras muito distintas a qualquer momento, e lá está a própria música, capaz de variar totalmente pelas formas, técnicas e séculos, ajudando ainda mais essa diversidade de audições (e comprometendo qualquer generalização). Tendo esse quadro de relações com a música, seria apenas natural que eu contasse com ocasiões pra viver essas experiências musicais plenamente, e que concertos não tentassem doutrinar a minha maneira de ouvir música, mas que me *convidassem* a ouvi-la das várias maneiras como eu gosto de ouvi-la e até mesmo a descobrir maneiras novas. Como o concerto pode fazer isso? Nesse sentido é claro que não há nada de errado em ir a um concerto que pressupõe silêncio e contemplação concentrada, mas partir desse ambiente para elaborar um ideal de audição inegociável para a música clássica pode se tornar excessivamente depurador. Porque se um concerto tiver o bom senso de contar com o mesmo silêncio que se espera em muitas salas de cinema, apenas esse silêncio já vai ser capaz de abrigar *diferentes* tipos de audição musical de cada pessoa, dependendo do humor e da personalidade dos ouvintes presentes (que queiram ouvir até o silêncio ou que queiram se deixar empolgar de maneira menos sutil). Ou seja, a relação sequer é de um concerto pra um tipo de audição. E a partir daqui, fica claro que o ambiente do concerto tradicional é razoável e tolerante em si mesmo, que é bom que ele continue disponível dessa maneira, e que novas iniciativas, à parte dele, podem ajudar e complementar esse quadro de experiências musicais, mostrando que há vida na música clássica, e não apenas etiqueta, se alguém ainda duvida.
ResponderExcluirNessa discussão toda, o meu post era uma crítica à reflexão que é feita a respeito da imagem da música clássica entre o público *partindo-se* de uma crítica ao formato do concerto convencional (como fez o Terauds). Eu concordo que a música clássica sofre, juntamente com a alta cultura, de uma desnaturalização em meio à cultura geral, e que a sua imagem ganha péssimos preconceitos com isso. Mas discordo que o concerto padrão, com músicos bem vestidos e silêncio pressuposto durante cada obra, seja responsável ou fomentador dessa imagem por si mesmo. Por isso, de um lado, sugiro que os críticos amenizem um pouco o desejo de determinar como as pessoas devem ouvir música clássica, porque o mundo é múltiplo e paradoxal mesmo, e mais vale que lutemos pela disponibilidade do que admiramos do que por um controle totalitário. E de outro lado sugiro que essa naturalidade perdida com a música clássica seja resgatada, se alguém faz questão, com iniciativas espontâneas de concertos, como linkei lá no final do post.
E já escrevi demais.
Abraços e obrigado por ter dado atenção ao post e iniciado este diálogo neste espaço! :)
Grande Leonardo,
ResponderExcluireu é que tenho a agradecer, pelo seu post original e por voltar aqui para continuarmos conversando. Sempre há muito mais o que falar e, o mais importante, a esclarecer.
Você tem razão, minha postura em relação a isso tudo acaba sendo mesmo bastante romântica, ainda mais quando evocamos esses conceitos tão caracteristicamente românticos, começando pela idéia de sublime. Entendo que seja uma característica minha que determine minha concepção, e que esta é só uma de várias. Também concordo que lidei no texto, acima de tudo, com um ideal de audição, baseado em minhas crenças, claro.
Mas provavelmente pela maneira que escrevi, e até por ter tido a cara dura de falar em "elitismo", pode ter ficado parecendo que sou insensível a abordagens menos ou não intelectualizadas da música erudita. De fato não é verdade isso. Pelo contrário, acho incrível quando uma pessoa simplesmente gosta desse repertório, sem nem mesmo saber do que se trata, às vezes. Já presenciei isso umas boas vezes, e acho mesmo maravilhoso que isso aconteça, que a música, à parte de seus conteúdos intrinsicamente intelectuais, consiga capturar a escuta até mesmo do ouvinte mais desavisado. Confesso que não acredito numa universalidade plena da música, mas numa semi universalidade, limitada por uma série de parâmetros culturais, geográficos, temporais etc. Mas acredito plenamente no ouvinte sensível, e adoro quando presencio algo assim. Tantas e tantas vezes, inclusive, já fui cumprimentado após recitais com relatos efusivos e sinceros do tipo "sua música me comoveu!", vindo de pessoas com pouca ou nenhuma cultura musical. Incrível! E o que tenho a dizer sobre essas pessoas é que, exatamente devido à sensibilidade (a qual inclusive menciono no texto), são ouvintes praticamente ideais, ouvintes que literalmente "apreciam" a música, sem maiores necessidades de imporem-se como platéia. Pretendi tratar, no texto, exatamente do tipo de ouvinte menos sensível que se coloca na platéia quase como se assumisse um papel pré definido de "aplaudir qualquer coisa quando o som finalmente cessar". Então, aproveitando seu comentário, acho que é bom eu já esclarecer aqui: o ouvinte sensível - na minha opinião - é o ouvinte ideal, pois é o ouvinte que deixa a música falar; e se ele tiver mais ferramentas para ouvir melhor, tanto melhor para ele.
Também concordo que existem maneira diversas de as pessoas se relacionarem com a música. Sim. Mas não creio que o ambiente de uma sala de concerto deva se propor a comportar essa gama de variedade. Como você disse, existe um espaço saudável nesse ambiente para as pessoas se colocarem em suas audições até um limite, mas o limite existe e deve existir. Mas a situação de uma apresentação, ao meu ver, guarda sim muito de ritual, e como tal deve ser respeitado e preservado, até porque a sala de concerto é apenas uma forma possível de ter contato com música. Basta pensarmos em outros rituais, para entendermos que cada um guarda suas propostas e seus limites. Penso que o "cativar" ou educar um público seja tarefa de alternativas, como as que você descreveu. Mas o grande momento do fazer musical pleno, num teatro ou sala, não comporta a idéia de manifestações pessoais diversas que acabem ultrapassando o limite ritualístico. Se uma pessoa, por exemplo, sente profundamente a música em termos físicos, deveria ela ter um espaço para dançar num concerto da Filarmônica de Viena? Claro, um exemplo grosseiro, mas só um exagero para mostrar mais claramente como penso. Se essa pessoa precisa dançar para ouvir música plenamente, então ela precisa de outras alternativas, pois o ritual final não comporta esta manifestação. É mais ou menos isso.
Daí eu esbarro numa discordância com o que você diz: na minha opinião uma sala de concerto não pode ser tão ruidosa quanto uma sala de cinema. No cinema o barulho incomoda, mas lidamos mais facilmente com ele, provavelmente pelas características própria mídia que temos ali, que muito naturalmente não utiliza o silêncio como recurso expressivo (claro, há exceções), e mesmo quando o silêncio no filme se faz momentaneamente mais importante, ainda conseguimos captá-lo mesmo com algum barulho. Na música, as sutilezas são bem maiores, penso, e daí minha opinião de que o barulho deva ser mínimo. É um outro contexto sonoro e expressivo, e a audição, neste caso, é praticamente a totalidade da informação, ao contrário do que ocorre no cinema.
ResponderExcluirSobre a questão da beleza funcionar como parâmetro maior para a defesa de uma escuta mais atenta ao invés da abordagem intelectual, bem, posso estar enganado, mas creio que, a rigor, procurar a beleza numa música nos termos que você colocou seja um sinônimo de ouvir "inteligentemente", ou intelectualmente. Pois quando nos propomos a ouvir com o intelecto, o que queremos é justamente desvelar a belezas recônditas nas sutilezas, nos detalhes, em tudo que requer mais atenção. Não sei, não consigo desvincular uma coisa da outra. Será que entendi corretamente o que você quis dizer?
Por fim, falando de uma das essências do seu post que você resgatou, também penso que a naturalidade com a música erudita deva ser resgatada e ampliada, afinal é música de primeira que deveria falar a todos com muita ênfase, e a todo instante. Mas não vejo a sala de concerto como um cerceador da naturalidade na relação com a música. O concerto, o recital, são momentos ápice de reverência a tudo aquilo que citei, quase momentos de "oração", mas são apenas um instante de todo o processo de relação homem X música. A espontaneidade e o prazer de ouvir, na minha opinião, não excluem a reverência ocasional, e vice-versa.
Põxa, é muita coisa pra se pensar. Partindo do seu post e depois com o foco do meu, acabamos abarcando um assunto vastíssimo, com muito de interesse e algo de polêmica. Enquanto tivermos forças, continuamos..rs
Obrigado, Leonardo!
Ah, mas agora eu teria pouco a acrescentar, você já esclareceu o que mais me chamava a atenção no texto e de resto eu concordo com você. :)
ResponderExcluirComentei notando especialmente essa associação entre o sublime - que você evoca pra descrever a audição de um ouvinte sensível - e o intelecto, e quando você diz que a música clássica é elitista em um sentido que se define pelo intelecto. Eu concordo totalmente que, como você disse agora, o intelecto seja uma faculdade de desvelar a beleza na música e que por isso mesmo a arte oportunamente o provoque. Mas quando pensei em pessoas que têm uma relação muito mais intuitiva com a música, pensei que elas seriam o exemplo de audição não intelectualizada e ainda assim legítima de alguma forma, o que tornaria o corte do intelecto na definição desse elitismo da música clássica muito radical. Por isso disse que o corte final acaba sendo a beleza, contra vários fatores que podem impedir a sua percepção (e aí de fato, nós vemos que a percepção dessa beleza também não é pra todos).
Sobre a comparação com o cinema, é um pouco um apelo pra mostrar que muitas vezes queremos chamar de elitista os trajes dos músicos e a política de silêncio de um concerto, mas não chamamos condições semelhantes de elitismo no caso do cinema, em que se um sujeito começar a aplaudir no meio do filme ou se o seu celular tocar as pessoas não vão gostar e vão poder ser bem "caretas" em muitos casos. Acho que isso mostra como essa imagem da música clássica, que alguns responsabilizam ao formato do concerto tradicional, na verdade já vem de fora. Mas claro que, como você diz, pensando na comparação, sendo o som a matéria preciosa da música isso torna o ambiente sensivelmente diferente na prática.
De resto, levando em conta a relação entre os limites da cerimônia de um concerto e as várias maneiras como uma pessoa se relaciona com a música, é preciso evitar que queiramos (especialmente músicos, que incorporam a música e sua imagem diante do público) *impor* que as pessoas ouçam a música sempre de *uma* maneira ideal tendo o ambiente do concerto como modelo. Porque o efeito seria exatamente de desnaturalização, de criar uma aura de se achar que, ao se afastar de um tipo de audição específica, se vai estar ouvindo música clássica de maneira "errada" - e aí vem todo aquele estigma da forma, da teoria musical como coisa de especialista, etc. Quando na verdade mesmo dentro da cerimônia do concerto tradicional existe tolerância pra diferentes tipos de audição! Entendendo isso, o tom de se expor essas qualidades mais sutis da música é bem mais de convite às pessoas se munirem de conhecimento e sensibilidade pra serem ouvintes melhores no papel ativo de desvelar a beleza da música. E a partir daqui, se falarmos de gente querendo dançar ao ouvir música clássica (boa ideia) ou outros tipos de experiência mais diferentes que surjam dos ouvintes, que essas coisas, claro, não precisem mudar o concerto tradicional e o seu ambiente (de onde eu e você o defendemos ferrenhamente), mas que componham lá, se necessário, as iniciativas de quem queira oferecer alternativas ao ambiente padronizado do concerto tradicional (até porque aparentemente era possível encontrar alternativas a um mesmo formato de concerto no passado). Dá pra pensar nos concertos didáticos, nos concertos abertos a pedidos, mas também dá pra pensar em um envolvimento diferente com o público, como foi mostrado aqui: http://www.overgrownpath.com/2012/01/classical-music-is-not-spectator-sport.html.
E é isso! Meio que saindo de um "paternalismo estatal" pra um "liberalismo" no âmbito da promoção da música, contanto que com responsabilidade e especialmente mantendo o que é apropriado e importante disponível. :P
No fim concordávamos bem mais do que parecia, como sempre...
Abraços! :)
Verdade! Concordávamos mais do que se imaginava... :D
ResponderExcluirCom tudo que você escreveu agora eu (adivinhe!) concordo. Só teria a dizer que eu particularmente não vejo o concerto como um "modelo" que as pessoas devam seguir como maneira de ouvir música erudita. Vejo mesmo como um grande momento imbuído de certa solenidade e ritualismo, o momento de reverência e de conexão máxima com a música. Apenas isso. De fato, é necessário haver outras formas de música ao vivo, sejam educativas ou não, é necessário que existam concertos mais leves, mais bem humorados, e que as pessoas ouçam música de primeira de maneira mais constante, ao mesmo tempo em que os interessados possam "cultuar seus deuses" com a máxima reverência nas salas de concerto sem serem vistos como empolados, separatistas nem nada do gênero. Acho que é isso.
Obrigado novamente!
Sim, eu gosto de acreditar que um concerto moldado em função das condições dadas à contemplação da música seja um princípio do qual não se abra mão, e isso é algo que o concerto tradicional faz muito bem ao pressupor silêncio durante as obras. Só por isso, se tivermos apenas o concerto tradicional como espaço público de experiência com a música clássica, já vamos ter o fundamental e mais importante. Mas essa perspectiva da pluralidade com que experimentamos a música nos previne de tentar criar (frustradamente) regras unívocas de audição a partir do ambiente do concerto tradicional, e nos permite ver iniciativas de novos formatos de concerto não como uma substituição ou competição ao concerto tradicional, mas como novos espaços disponíveis pra favorecer a pluralidade de tipos de audição que nos é natural, antes que alguém pense que não é.
ExcluirAí também é perfeitamente possível sim chamar a atenção pra qualidades da música que peçam por um tipo de audição, como é o caso de uma abordagem funcional ou mesmo sublime da música, mas aí isso se torna algo convidativo, e não a ilusão (condenada à frustração) de ser algo normativo.
Abraços e experimentemos o diálogo mais vezes! :)
Gostei muito do seu post, bem vamos a alguns comentários e talvez alguma pergunta.
ResponderExcluirEntendi perfeitamente sua visão sobre o aplauso, certamente é um tipo de auto afirmação acho, inclusive o costume de gritar Bravo, que sempre achei divertido e que geralmente era feito por aqueles senhores da primeira fila, mas não sei se deveriamos generalizar todos os aplausos dessa forma, talvez alguns seriam como um aperto de mão e agradecimento por ter proporcionado tão lindo espetáculo, mas preciso digerir um pouco mais sua idéia, ela é muito interessante e convincente.
gostei muito quando aborda a questão do elitismo, algo que também acho, e gostei do seu comentário, é muito dificil ver um músico de dentro de um estilo assumir esses problemas, geralmente se esquivam e criam justificativas para dizer que não é bem assim. A busca pelo fácil é o que leva a falta do hábito de ler, de assistir programas de tv com mais conteúdo, de buscar entretenimentos mais inteligentes, de se consumir uma cultura facilmente mastigável e comercial. Fico muito feliz de ver que você tem uma visão social, da diferença que existe, geralmente se critica sem levar isso em consideração, como disse no blog do Leonardo, é mais facil para o cara dizer que são apenas ignorantes.
Nós podemos dizer que existem esses dois tipos de ouvintes: aquele que vai realmente para ouvir e o que vai para encontrar amigos, fazer média, ou até o caso do senhor que grita Bravo, talvez para mostrar a todos que estão nas filas atrás dele que ele é um ótimo conheceder da obra, mas essa soberba por parte de alguns ouvintes não vem bem ao caso agora.
acho que a questão ritualistica vestimenta ou aplausos fora de hora, são importantes para quem está ouvindo entender, mas acho que além disso tudo ai, temos a questão acústica, parei para pensar comparando uma sala de concerto com um show de uma banda de rock, parece um absurdo comparar mas podemos tirar algo dai, o comportamente do público é diferente, em um show de banda se conta com o recurso da amplificação do som, as pessoas podem berrar, cantar junto etc, nada vai atrapalhar o artista, já a sala de concerto o som é bem mais refinado, e digo isso até tecnicamente também, não estou dizendo que a musica de orquestra na sala de concerto seja melhor que a popular, mas que existe uma preocupação muito maior pela qualidade, expressividade, recursos esses que são usados e que para outros estilos músicais não são vistos com importância, gosto de analisar as coisas fazendo comparações e vendo a diferença de comportamento pois uma pessoa pode gostar dos dois e ter comportamentos diferentes nos dois ambientes.
vou tentar te mandar um email tenho uma questão, é até para uma pesquisa de monografia que estou fazendo sabe, não tem haver com o assunto aqui abordado, parabéns pelo post
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