29 de fevereiro de 2012

Música e silêncio, e o silêncio na música

Este post surge como um longo comentário ao ótimo post do Leonardo T. Oliveira lá no Euterpe, o qual possui este título (clique nele para acessar a postagem):


O assunto tão bem tratado no texto do Leonardo é da maior importância. Seria produtivo aos interessados que o lessem antes de ler o que segue, e que lessem também os comentários à postagem, que acabaram aprofundando a discussão. 

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Vou começar contando duas historinhas, que servirão depois. 

No ano passado realizamos aqui em Maringá, eu com outros três pianistas, o ciclo da integral das Sonatas para piano de Beethoven, em um projeto incrível da prefeitura. A maioria das obras foi executada por nós com o uso de partituras, isso porque cada um de nós precisava aprontar uma nova sonata por mês, e não tínhamos tempo de memorizá-las. Por isso, contratamos uma outra pianista da cidade, nossa amiga, para atuar como nossa paginista. Alguns recitais ocorreram normalmente. Num certo dia, quando eu iria tocar a Sonata Op. 22, pouco antes do recital eu disse à paginista que ela não se preocupasse em virar a página ao final do segundo movimento, que eu mesmo faria isso. Minha preocupação era que a movimentação dela (levantar da cadeira e virar a página) pudesse causar qualquer ruído em um momento no qual, depois de um movimento lento e intimista, os sons morreriam e o silêncio assumiria o discurso musical. Mesmo sabendo que ela, por sua competência, não costumava fazer ruídos ao virar as páginas, ainda assim pedi que não virasse naquele ponto, pois mesmo a informação visual dela em pé ao meu lado parecia-me ir contra a necessidade de total ausência de ação física naquele momento quase místico em que o som morre e nasce o silêncio. Esse momento é representado por essa quebra de páginas entre o final do segundo e o início do terceiro movimentos:

Beethoven, Sonata Op. 22 - últimos compassos do 2o. movimento (Adagio con molt'espressione),
quebra de página, e compassos iniciais do movimento seguinte (Menuetto)
Outra história: uns meses depois, recebemos neste mesmo projeto um dos maiores nomes do piano brasileiro na atualidade,  Ney Fialkow, que veio para tocar a Sonata Op. 106 "Hammerklavier" (pois desde o início sabíamos que nenhum de nós conseguiria aprontar esta que é, sem dúvida, a maior e mais difícil das sonatas de Beethoven, muito menos tendo tantas outras para estudar em sequência). Na noite em que ele tocou, apenas eu dividi o palco com ele. Pouco antes do recital estávamos no camarim, e ele dava algumas instruções à nossa paginista. Em certo momento, ele disse a ela apontando os últimos compassos do 3o. movimento, Adagio sostenuto: "Bem, aqui acho melhor você não virar a página de imediato. Espere até eu tocar a sucessão de fas que abrem o movimento seguinte, depois você vira. Nós precisamos sentir essa suspensão do arpejo de fa sustenido que depois do silêncio caminha meio tom abaixo nos fas naturais...". Ele se referia a uma situação parecida com a da Sonata Op. 22, mas ainda mais expressiva, devido ao movimento cromático descendente que separa os dois movimentos, e isso após um dos momentos musicais mais profundos de que se tem notícia, que é o Adagio sostenuto desta sonata. O silêncio entre esses dois universos é crucial, é a própria ponte entre eles. Mais uma vez, uma virada de página separava esses dois momentos:

  --------------------(quebra de página)--------------------
Beethoven, Sonata Op. 106 "Hammerklavier" - Compassos finais do 3o. movimento (Adagio sostenuto),
quebra de página e compassos iniciais da introdução (Largo) do movimento seguinte.

Em seu post, o Leonardo nos ofereceu um panorama da problemática que envolve diversos fatores, e que alguns comentaristas acabaram por reduzir à questão da "etiqueta na sala de concerto". Como ele mesmo frisou, a questão do "aplaudir ou não aplaudir" é bem mais complexa. E como ele também nos diz, há três principais linhas de pensamento que normalmente são usadas para tentar explicar esta peculiar realidade  das salas de concerto, realidade esta relacionada também à etiqueta, mas ainda a outros fatores. A atual configuração do ritual presente em recitais e concertos, e que aparentemente pressiona a platéia a demonstrar altas doses da tal civilidade, pode ser explicada, de acordo com o texto no Euterpe, como:

1) parte de um processo civilizador da história contemporânea e suas etiquetas, 2) resultado de um sincretismo social dos teatros e de um embotado decoro pequeno-burguês em busca de status ou 3) no seu extremo, como parte de um processo de sacralização, de canonização e de engajamento com a ideia de sublime da concepção de música e do ambiente propício para se apreciá-la.
Compreendo que as duas primeiras explicações possam dar conta de abarcar a questão até certo ponto, e que elas explicam no máximo sua superfície. Na minha opinião, entretanto, é a terceira que comporta a grande  essência da mesma, e é ela o foco deste texto.

A inefabilidade do silêncio 

No texto que deu origem a este, o autor, muito apropriadamente, discorre sobre as relações tonais que se estabelecem entre movimentos em sonatas, por exemplo, e que não admitem ser quebradas pela intervenção de aplausos (ele, inclusive, usa também a Sonata Op. 106 para tratar desta questão). Isso é fato, e já está bem dito lá. Aqui, quero falar de um outro elemento, que se conecta à questão tonal, que diz respeito ao uso do silêncio como discurso.

Percebemos claramente que a partir do desenvolvimento da idéia do sublime em música, e de sua fixação no imaginário musical do século XIX, a música passa a ser concebida como um dos maiores, senão o maior, meios para se buscar atingir este "estado de espírito" que é tão complexo de se descrever, e que certamente não é um mero estado de espírito. Especialmente na música instrumental, mas também fortemente no Lied, a transcendência é almejada, e a música passa a querer falar o que não pode ser dito em palavras. É a partir daí que o discurso musical ganha um status diferenciado, como se necessitasse  ser ouvido com uma qualidade de audição e uma dedicação intelectual como nunca antes havia necessitado. Já podemos sentir e perceber muito disso na música instrumental das últimas décadas do século XVIII.

Cada vez mais, a partir de então, as sutilezas de condução do discurso musical aumentam, e especialmente as conexões entre seções, partes e movimentos de peças maiores vão se tornando mais expressivas. Pensemos aí na incrível transição que Beethoven constrói entre os 3o. e 4o. movimentos de sua 5a. Sinfonia:  é já uma transição entre dimensões, tal como será a transição acima citada na Sonata Op. 106, construída sobre sonoridades tão sutis que é preciso aguçar a audição e deixar-se imergir nesse ambiente, no qual o tímpano conduz toda a sequência por meio de uma transformação da célula geradora da sinfonia (clique AQUI para ouvir o ponto exato ao qual me refiro):

Beethoven, Sinfonia nr. 5 - Final do 3o. movimento, a partir do compasso 324,
parte dos tímpanos na transição para o 4o. movimento


Da sutileza para o silêncio, o caminho é curto. A maneira como o silêncio é trabalhado como um agente constituinte do discurso musical é cada vez mais patente a partir do Classicismo. Vêm-me à mente alguns exemplos disso, desde Mozart. Um exemplo muito significativo, entretanto, está ao longo do 1o. movimento  da Sonata para piano D. 960 de Schubert, onde trinados abissais comentam o aparente lirismo melancólico do primeiro tema, apenas para depois serem cessados por um silêncio ainda mais abissal. Este não é um momento onde se corre o risco de ouvir aplausos fora de lugar, mas se o pianista não deixar o silêncio soar o suficiente, o efeito desastroso para o discurso seria o mesmo. Ouça o primeiro minuto da sonata, onde tudo isso aparece:

Schubert - Sonata D. 960, 1o mov. - Sviatoslav Richter

O silêncio, aqui, diz muito, tanto quanto os sons que o precederam e sucederam. E como vimos nas duas historinhas que contei no início, muitas vezes o silêncio funciona não como seccionador de duas partes, mas como conector das mesmas. Qualquer ruído nesses pontos vai contra o discurso da música. Em um dos comentários em seu próprio post, o Leonardo disponibiliza um link que leva ao ponto em que Claudio Abbado, após mais de 70 minutos de música de Mahler, segura os aplausos da platéia por um tempo aparentemente longo demais, mas que é o tempo que ele sentiu necessário para que o discurso musical cessasse em todos os níveis, não apenas fisicamente, até que o silêncio passasse a ser apenas ausência de som novamente, e não mais uma continuidade do discurso (com a permissão do Leonardo, trago este exemplo pra cá. Clique AQUI para ver o ponto exato).

O uso expressivo do silêncio na música revela-se como uma consequência quase extrema do pensamento dos primeiros românticos (neste caso, Beethoven inclusive), que buscavam com os sons a expressão do que estava além das palavras expressar. Uma radicalização da idéia de inefabilidade, sim, pois também o "não-som", o silêncio, passa a expressar isso tudo.

Levando isso em conta, não é de se estranhar a decisão do pianista Glenn Gould, o qual, em certo momento da carreira, deixou as salas de concerto para dedicar-se apenas a gravações em estúdio. Dizem que ele teria alegado que as performances ao vivo eram grandemente prejudicadas pela interferência dos ruídos da platéia, e que o silêncio do estúdio proporcionava o ambiente ideal para interação com a obra musical. Em princípio isso parece um exagero, mas constantemente lembro-me de Gould quando estou tentando me concentrar em um recital - seja tocando ou assistindo - e os ruídos da platéia (tosses, conversas, ruídos de cadeiras, balas e chicletes sendo abertos) insistem em quebrar toda a atmosfera. Nesses momentos inevitavelmente me questiono se o pianista canadense não tinha mesmo toda a razão, muito embora eu também acredite que nenhuma gravação substitua uma apresentação ao vivo. É exatamente por conta deste dilema que existe esta discussão toda sobre tudo que envolve a figura do ouvinte numa sala de concerto.


Aplausos como fragmentação e como auto afirmação

O ruído, de qualquer natureza, num ambiente de concerto, pode funcionar como um fragmentador do discurso musical, e maior é a interferência quanto maior for a preocupação do compositor com a integralidade e integridade do discurso como um todo. Os aplausos, mais do que um ruído ocasional e um incômodo auditivo, quando oferecidos na hora errada representam a revelação de que os ouvintes não entenderam, não captaram ou não se preocuparam com o discurso musical, e isto é fatalmente incômodo para quem está no palco lutando para que a idéia de um todo se mantenha. Quanto mais compositor e intérprete (s) abordam o fazer musical como meio de algum tipo de transcendência, maior será o incômodo causado por qualquer tipo de interferência nesse processo. Num contexto assim, o aplauso funciona como uma manifestação anti-sublime, no sentido de que constitui a representação máxima da situação física e terrena de pessoas assistindo a uma apresentação musical, enquanto no palco o sublime, o não-terreno, era almejado. Não sei dizer se ele pode ser alcançado, mas sem dúvida só pode ser buscado a partir de um ambiente onde a música fale mais alto, e apenas ela.

Muitos anos atrás (lá vai outra historinha) tive o imenso prazer de assistir, no saudoso Teatro Cultura Artística em São Paulo, a um recital do excelente Matthias Goerne cantando o ciclo Winterreise de Schubert. Antes do início, foi anunciado que o cantor pedia que a platéia não fizesse ruídos ao longo do recital, tomando especial cuidado ao acompanhar os poemas impressos no programa, e que não houvesse aplausos ao final. Eu nunca, até então, havia visto algo assim num recital. Mas assim que o anúncio terminou, esses pedidos do Goerne fizeram todo o sentido para mim. Eu, particularmente, sempre me incomodo ao extremo com barulhos em concertos, e, além disso, depois pensei: como pode haver aplausos depois de Winterreise? E, de fato, depois daquela jornada, maravilhosamente conduzida pelo duo, não havia possibilidade de aplausos. Aplausos para quê? A música estava feita, a mensagem estava passada, os artistas deram seu melhor. O ciclo caminha num grande arco descendente, acompanhamos o protagonista caminhar para terrenos físicos e psicológicos cada vez mais áridos e sombrios, e ele se encerra num completo anti-clímax. Querer aplaudir após 70 minutos de Winterreise significa querer auto afirmar-se na condição de ouvinte diferenciado, como quem quer dizer em alto e bom som: "Eu aguentei quieto esse tempo todo, eu gosto de Schubert, eu sei que isso tudo foi bom, eu preciso que todos saibam disso, eu preciso que o cantor perceba que eu entendi!" Ou é isso ou a pessoa simplesmente não entendeu a profundidade do que acabou de lhe passar pelos ouvidos, não entendeu que o silêncio é o único arremate possível àquela jornada, e a necessidade de aplaudir acaba surgindo como um eco da etiqueta da sala de concerto, ou seja, aplaudir qualquer coisa quando o som finalmente cessar. Se um intérprete do naipe de Goerne abre mão dos aplausos, isso decorre da valorização da música como algo que está acima dele mesmo, pois é aquela música que não pede aplausos. Assim, mesmo que tenhamos o ímpeto de  homenagear o trabalho de um grande artista com nossos aplausos, não deveríamos jamais nos incomodar em não aplaudir em casos como este, pois a maior homenagem ao artista é nossa presença em sua apresentação, e a maior homenagem à música que pede o silêncio é não interrompê-lo.

A enxurrada de músicas que terminam em anti-clímax ao longo do século XIX nos mostra o quanto tantas e tantas vezes os compositores lidavam com a idéia de que a melhor homenagem à música é muitas vezes o mero silêncio. Se Liszt em sua juventude exercitava sua vaidade e buscava aplausos para si com obras fogosas, Schumann mais comumente, em seu intimismo, buscava o não-aplauso, escrevendo finais como ESTE, em que a música caminha para pianissimos e morre no meio deles, deixando os ouvintes tantas vezes sem entender se a música realmente terminou. 

Por outro lado, como muito bem lembrou o Leonardo, há ambientes e ambientes, públicos e públicos, e repertórios e repertórios. A ópera, por exemplo, por muito tempo foi sinônimo de diversão e de ponto de encontro entre interessados, que gostavam tanto das pirotecnias vocais eficientes quanto gostavam de arremessar tomates nos cantores que não as conseguiam a contento (isso ocorreu de forma bastante intensa ao longo do século XVIII e até as primeiras décadas do XIX). Num ambiente deste, pode haver preocupação com o discurso musical? Fica claro porque Rossini, por exemplo, escrevia os finais dos números bastante barulhentos, para que soassem por baixo dos aplausos e assovios. Nesse contexto, qualquer número de uma ópera é um evento em si mesmo, pensado para provocar e comportar aplausos efusivos. Além disso, à parte da questão musical, a ópera desde sua origem traz em si a proposta de funcionar como um grande espetáculo, e mesmo o drama wagneriano não foge de tal pressuposto. Assim, não aplaudir os grandes números operísticos acaba consistindo no mesmo absurdo de aplaudir entre movimentos de uma sonata de Beethoven ou entre as canções de um ciclo de Schubert.

Observando todos estes detalhes e tomando consciência do quanto a música recorrentemente exige do ouvinte posturas específicas para que ela desenvolva seu discurso de forma plena, fatalmente chegamos à famosa e desgastada polêmica:

A música erudita é elitista?

Sem querer discorrer muito sobre o assunto, que começa a fugir do tema principal do texto, dou sem rodeios minha opinião pessoal: sim, a música erudita é para alguma elite.

Mas a grande questão é entender que elite seria esta. O assunto não tem nada a ver com dinheiro. Já faz muito tempo que a música de concerto (ou clássica, ou erudita) deixou de ser privilégio da elite econômica. Entretanto, ela continua o sendo de uma elite intelectual, e não há como fugir desta realidade. A música erudita existe para todos, mas nem todos existem para ela. Esta aparente dicotomia pode ser explicada em outras palavras: ouvir esta música é algo que exige um mínimo de conhecimento, boas doses de disposição e concentração, e um contínuo aprimoramento das próprias habilidades de escuta. É necessário uma escuta inteligente, algo muito mais raro do que se imagina, pois mesmo músicos por profissão, recorrentemente, não apresentam a disposição para desenvolvê-la. Escutar inteligentemente é algo que requer vontade, informação e constante treino, e isso, infelizmente, não é para qualquer um.

As ferramentas no mundo contemporâneo estão à disposição de uma grande quantidade de pessoas. Informação e as melhores gravações do planeta consegue-se gratuitamente pela internet. Prefeituras e empresas privadas constantemente promovem concertos de qualidade a preços mais que populares.  Bibliotecas públicas oferecem tesouros do conhecimento humano gratuitamente. Inacessibilidade ao conhecimento deixou de ser desculpa há muito tempo. É claro que, em nosso país, por exemplo, há uma quantidade enorme de pessoas que ainda não alcançaram o mínimo de condições sociais, e para elas tudo que fuja ao que é oferecido como cultura de massa consiste num obscuro universo inatingível. Mas não me refiro aos extremos da sociedade. Falo da enorme massa que tem a possibilidade, mas não tem a vontade, e é essa falta de vontade que define quem ouve música erudita e quem não ouve. Pensar em questões de inclusão e de mecanismos para despertar esta vontade, já é outra problemática. Particularmente continuo crendo que falta de vontade em aprender a ouvir é algo bastante pessoal, no fim das contas, na medida em que vejo, como disse, mesmo músicos que tocam música erudita por profissão preferindo ouvir Adele depois de "baterem o ponto". Ouvir inteligentemente é mais difícil até mesmo do que fazer música, muito embora minha convicção seja a de que só faz música realmente bem que é capaz de ouvir com o máximo da inteligência. Ainda uma outra questão que não cabe aqui.

A quantidade de músicos eruditos que precisam ralar muito para pagar as contas no fim do mês é a maior prova de que música erudita não mais guarda qualquer relação com poderio econômico. Constatamos isso também quando vamos a concertos em grandes teatros ou salas, e percebemos que as finas senhoras empoladas lá estão para literalmente "fazer a social", e que a música que acontece no palco nada mais é do que um detalhe neste cenário.

Música empolada?

Falando em empolamento, quero ainda rapidamente discorrer sobre a questão da suposta afetação do universo da música erudita.

Ora, claro que vemos o tempo todo músicos pedantes, divas que se preocupam mais com os vestidos do que com a música. Isso é comum, mas me parece que foi mais comum no passado. Seja como for, músicos assim são apenas uma parcela do todo. O que não se pode confundir é empolamento com reverência.

Os músicos se vestem bem para tocar porque, antes de tudo, há uma reverência para com a própria música, e isso é saudável. Quando se critica a vestimenta dos músicos eruditos, normalmente essa crítica vem de uma profunda falta de conhecimento e mesmo de sensibilidade para com os processos que envolvem a relação do músico com a música. Em linhas gerais, a vestimenta adequada consiste numa grande reverência ritualística a todo o processo que envolve uma apresentação. Em primeiro lugar à música, claro, mas também outras tantas reverências: ao público, ao compositor, aos patrocinadores e, muito importante, uma reverência a si mesmo, a toda sua história de preparo enquanto intérprete, e às incontáveis horas de estudo, ensaios e preparação para se permitir subir ao palco e mediar a relação entre compositor e platéia.

Com exceção de casos bastante isolados, o ritual de vestimenta e de comportamento do músico para uma apresentação é compreendido e mantido devido a todos esses fatores. Querer questionar isso com base em alguma revolta pessoal significa não compreender a profundidade da questão, como disse. Não, meu amigo, não há a menor possibilidade de tocar um concerto de Brahms usando jeans e tênis. Não espere isso de um músico sério, que estuda há anos e anos, e que enxerga seu próprio ritual como algo bastante sagrado. Não, meu amigo, não queira culpar as casacas, os ternos e os vestidos por um suposto afastamento da música erudita do povo, pois fazer isso consiste numa grande desonestidade intelectual, e completa ignorância. Se tal afastamento existe, sinto dizer, boa parte da culpa é do próprio povo.

Em seu texto, o Leonardo fala em soluções para melhorar essa situação toda, como a proliferação de concertos didáticos. Concordo, há sim alternativas, especialmente pensando na formação de público, e elas devem ser consideradas e efetivadas. Mas no ambiente de uma sala de concerto padrão, ali a música deve falar acima de tudo. Aplausos quase sempre são comportados em todo tipo de apresentação, e eles são muito bem vindos pelos músicos, mas há que se ter bom senso e uma certa sensibilidade ao menos, para evitar justamente ir contra o que a própria música está pedindo.

Concluindo

Eu poderia resumir essa falação toda assim:

"Não aplauda na hora errada, respeite a música e o músico. Se você gosta de aplaudir o tempo todo, faça isso na ópera, ou em concertos com programa de música ligeira. Se você se sente oprimido pelo ambiente da sala de concerto, se não sabe quando aplaudir, talvez você precise investir tempo e energia para entender melhor este universo, até chegar ao ponto de você mesmo não admitir que a música seja mutilada por ruídos e aplausos perdidos, e ter certeza do momento certo de deixar correr seus aplausos. Se você acha o mundo da música erudita demasiadamente empolado e não tem paciência para ficar parado em silêncio durante um concerto ou recital, você realmente não entendeu esse contexto, e provavelmente o seu tipo de música é outro, e seu ambiente é outro."

Poderia resumir, mas que graça teria?


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Atualização:

Caro leitor, se você chegou até o final deste post, parabéns! E peço que leia os comentários, por favor, pois acabou acontecendo uma conversa boa lá, e muitas outras coisas importantes foram ditas, e esclarecimentos foram feitos. 

23 de fevereiro de 2012

Clichês do mundo da música

Robert Schumann, autor de importantíssimas obras orquestrais,
mas que, segundo alguns, não sabia orquestrar. 
Em qualquer área do conhecimento humano existem os fatos e existem os clichês. Os fatos são fatos, oras: são informações objetivas e documentadas que constituem a própria base do conhecimento, de maneira geral. Contra fatos não há argumentos, costuma-se dizer.

Mas há também os clichês, que são fatos falsos, são informações de péssima qualidade que são reproduzidas continuamente, formando as bases do famoso lugar comum (ou senso comum) do conhecimento humano. O lugar comum é um tipo todo específico de bobagem desinformativa, muito utilizado por aquele tipo de pessoa cujo conhecimento em determinada área transita entre o parco e o mediano. Agarram-se à salvação do lugar comum aqueles que não têm realmente o que dizer sobre algo, mas que ainda assim fazem questão de dizer qualquer algo sobre aquele outro algo. Contra clichês há os fatos.

Eu, por exemplo, sou leigo em cinema, apesar de já ter assistido a milhares de filmes por toda a vida, dos mais sublimes aos grandes lixos. Vi muito, mas ainda assim sou leigo. Posso ser um bom apreciador, mas sou leigo, pois nunca estudei sobre cinema, nem mesmo auto-didaticamente. Eu confesso! Meus discursos sobre cinema giram sempre sobre lugares comuns, e por isso não me meto a falar sobre "as propostas implícitas da crítica pós-moderna" de determinado diretor, ou do "jogo de câmeras voluptuoso e de clara influência felliniana" de outro. Mas não tenho obrigação de falar bonito, nem de falar com conhecimento de causa sobre cinema, pois eu ainda sou daqueles que acha que Spielberg é o grande narrador de contos da fada da contemporaneidade (olha aí um clichê!). Mas não me atrevo a falar isso pra quase ninguém, muito menos pra quem realmente entende do assunto. 

O triste é quando vemos pessoas que se dizem entendidas, ou que atuam profissionalmente em determinada área, propagando clichês aos quatro cantos, e tornando aquele lugar comum ainda mais comum. Infelizmente, o mundo da música está cheio desses tipos.

Ali em cima está uma figura de um "pobre" compositor que, segundo dizem alguns vários Senhores dos Clichês, "não sabia orquestrar". O sujeito é só um dos maiores compositores de todos os tempos, Robert Schumann (1810-1856), o qual, de fato, escreveu antes de tudo muita música para piano, canções e formações de câmara diversas. Realmente, é aí que repousa o centro de sua produção. Certo, mas vamos com calma. Uma coisa é o fato de que determinado compositor trabalhou mais com determinado instrumento e/ou gênero etc. Outra coisa é usar este fato como tentativa de embasamento para um clichê. O clichê, no caso, é o que se ouve por aí da boca de músicos, com certa frequência: Schumann não sabia orquestrar. O grande argumento dos que dizem isso é: se compararmos Schumann com Beethoven, Tchaikovsky, Wagner, Richard Strauss ou Ravel - todos reconhecidamente grandes orquestradores e instrumentadores - constataremos que ele não sabia orquestrar. Os que assim pensam, entretanto, parecem se esquecer de que Schumann tem uma produção orquestral considerável, sendo a base dela suas quatro sinfonias e algumas aberturas, sem falar em outras tantas obras que utilizam orquestra também. As pessoas que propagam este clichê sobre Schumann parecem acreditar mais nele do que na própria música do compositor. Como é possível que alguém possa julgar o compositor da música do vídeo abaixo como "mal orquestrador"? Ouçam a Abertura Manfredo, sob a regência de George Szell, e julguem por si mesmos. De minha parte, eu digo que está claro que Schumann sabia sim orquestrar, e muito bem, e mais: ele conseguiu algo com a orquestra que só os grandes conseguem, criar uma personalidade sonora bastante característica, com cores tipicamente românticas, na acepção original da palavra: 



Parece haver um certo prazer por parte dos Senhores dos Clichês em perpetuar e reforçar o senso comum, que geralmente tende a ser polêmico. Em terra de incultos, quem sabe um clichê é rei. Para quem nada conhece, um belo clichê atinge direto a alma, e nela se instala, e tende a viver nela até o fim, e se propagar depois, instalando-se em outras almas incautas. É uma espécie de processo viral, sendo que a única vacina ou cura é a aquisição de conhecimento real sobre o assunto. 

Outro clichê ofensivo, e um dos mais propagados no meio musical, tem a ver, obviamente, com um dos maiores ícones musicais de todos os tempos, e por isso mesmo um dos mais vitimados pelos Senhores dos Clichês. Dizem eles, o tempo todo, que "Beethoven não sabia escrever melodias!", e dizem isto de boca cheia e com sorriso leviano. Como sempre, para justificar o próprio clichê utilizam métodos comparativos ingênuos, e colocam lado a lado o compositor criticado com nomes aclamados do melodismo universal: Mozart, Bellini, Schubert, Tchaikovsky... , e nessas comparações forçadas pretendem validar suas crenças, plantadas, germinadas e colhidas no fértil solo do senso comum. E, mais uma vez, só podemos entender que tais pessoas, de fato, não conheçam o suficiente da produção melódica de Beethoven para julgar apropriadamente, e que confundam a grande veia motívica do compositor (com a qual ele construía grandes obras sobre um mínimo de material temático) com uma suposta inabilidade no trato com a melodia. Ah, que ledo engano! Que julgamento rasteiro de um compositor que tinha como grandes ídolos e ideais, acima de tudo, grandes compositores vocais (Haendel, Mozart e Cherubini), e que por toda a vida deixou correr sua veia de melodista. É inevitável o que farei, mostrar ao menos alguns de inúmeros exemplos do belo e competente melodismo de Beethoven. Juro que gostaria de mostrar muitos outros exemplos, mas como não quero vencer ninguém pelo cansaço, vão só três:



Adelaide - Dietrich Fischer-Dieskau, Jörg Demus



Concerto Triplo, 2o. movimento - 
Daniel Baremboim, Itzhak Perlman, Yo-Yo Ma



Romance nr. 2 para violino e orquestra -
Maxim Vengerov, Mstislav Rostropovich

Uma derivação deste clichê sobre o compositor é um outro, segundo o qual "Beethoven não sabe escrever para voz!". Como argumento os Senhores dos Clichês citam as passagens ultra agudas nas partes do côro da 9a. Sinfonia. E sobre isso, eu lhes pergunto: o fato de ele utilizar registros mais agudos por mais tempo significa que ele não sabia o que estava fazendo ou, ao contrário, sabia perfeitamente bem o efeito que pretendia conseguir das vozes? Se estamos falando de Beethoven, que escreveu uma quantidade enorme de música vocal da maior qualidade antes de buscar efeitos diferenciados, a mim me parece claro que trata-se aí de uma busca sonora específica, e não de um caso de incompetência.

Esses foram apenas dois exemplos de clichês dos mais famosos e dos mais gritantes, mas há outros muitos, que somos obrigados a ouvir e a ler com bastante frequência. Posso citar mais alguns:

  • Bach foi um compositor conservador
  • A música do Classicismo é comedida
  • Schubert não dominava a forma musical
  • Chopin tem belas melodias mas harmonias banais
  • Tchaikovsky é um compositor superficial
  • A música de Beethoven é temperamental e fruto direto de sua emoção
  • Os românticos se revoltaram com as "amarras" do Classicismo

E por aí vai. Claro, falar sobre cada um desses clichês tomaria um espaço desmedido. Na verdade, poderia haver um blog só para isso, ou mesmo trabalhos acadêmicos que se propusessem a desmontar essas banalizações de processos históricos e de compositores.

Este texto não passa de uma pequena reflexão e um alerta sobre um problema muito presente e muito incômodo, e diria pernicioso mesmo, especialmente se levarmos em conta que muitos destes Senhores dos Clichês são músicos e professores de música, responsáveis por transmissão de informação e formação de opinião. Vejo regularmente alunos propagando ingenuamente as asneiras que ouviram dos professores, o que é natural, considerando que durante o período de formação estes são inevitavelmente suas grandes referências. Estes maus profissionais acabam fazendo um desserviço, ou seja, agindo exatamente contra a boa formação cultural e intelectual de profissionais de música, já que um dos princípios da formação intelectual em qualquer área consiste justamente em evitar a todo custo os lugares comuns. Fujamos deles!









22 de fevereiro de 2012

Banco do Brasil e o Opus 81a. de Beethoven: qual a conexão?

Uma das maiores recompensas pessoais quando se estuda música e seus processos históricos ocorre quando conseguimos realizar conexões entre eventos aparentemente distantes e sem relação, seja entre passagens da própria história da música ou entre algo dela com a história mundial. E é só depois que conseguimos realizar a conexão que percebemos o quanto ela era óbvia.

Imagine você, cidadão, andando pelo centro de sua cidade com uma fatura qualquer na mão. Você precisa pagá-la e, coincidentemente, o banco mais próximo de você é uma agência do Banco do Brasil. Qual não é sua inocência, pois você está, sem saber, adentrando um recinto de um estabelecimento cuja história o liga a uma das sonatas para piano mais populares de Ludwig van Beethoven (1770-1827).

Napoleão I
Certamente você já ouviu falar e já leu algo a respeito de um dos personagens históricos mais revisitados e conhecidos da história mundial, Napoleão Bonaparte (1769-1821), praticamente um contemporâneo exato de nosso herói musical. E se eu lhe disser que há uma conexão direta entre Beethoven e Napoleão isso não lhe soará estranho: você se lembrará da famosa passagem que envolve a dedicatória da 3a. Sinfonia ("Heróica") do compositor ao então Cônsul Bonaparte, visto por muitos dos jovens de então como a própria encarnação do espírito heróico e revolucionário, que participara da Revolução Francesa e ajudava o mundo a tornar-se um lugar mais pleno de justiça e liberdade para os homens. Beethoven também pensava assim, e por isso dedicou-lhe sua sinfonia, mas deixou de pensar quando Napoleão mostrou sua verdadeira cara ao se auto-coroar Imperador em 1804. O compositor, humanitário até os ossos, sentiu-se traído e rasurou a capa do manuscrito, onde estava a dedicatória de próprio punho, deixando mesmo um buraco no papel. Até aqui tudo bem, passagem bastante conhecida. Mas não falta muito para chegarmos ao Banco do Brasil.

A conexão toda se dá pelo então Imperador, mais precisamente por sua sede de poder. Posta a coroa na cabeça (por ele mesmo, aliás), uma das primeiras providências foi conquistar territórios para a França. O experiente militar por baixo do manto imperial soube reorganizar o exército francês, agora com mais homens e mais recursos, e mandou sua renovada máquina de guerra para vários cantos com o propósito de impor o domínio francês sobre diversos territórios. Isso aconteceu, com menor ou menor intensidade, ao longo de onze anos. 

Quando o temido exército francês se aproximava de alguma cidade, a primeira providência dos membros da nobreza local que ali se encontravam era discretamente sumir para evitar capturas. Dependendo do caso, e do título nobiliárquico, a fuga poderia ser planejada para perto e por pouco tempo, ou por muito tempo em um lugar o mais seguro possível.

D. João VI
Arquiduque Rudolph
Um arquiduque na Áustria e um rei em Portugal, ambos bastante preocupados com a própria integridade física, mais ou menos na mesma época fogem das tropas francesas, e aí começamos a entender a conexão exposta neste texto. Primeiro foi D. João VI (1767-1826), outro quase contemporâneo exato de Beethoven e Napoleão, que no comecinho de 1808 saiu às pressas de Lisboa, levando consigo toda sua corte e ainda mais alguns milhares de portugueses. Vieram todos para um lugar bastante seguro, do outro lado do Atlântico, e você já sabe pra onde. Depois foi o Arquiduque Rudolph da Áustria (1788-1831) que deu um jeito de sumir de Viena em 1809, quando veio a notícia da aproximação das tropas francesas. Mas este não foi pra muito longe e retornou pouco tempo depois, ao contrário do rei lusitano. O que acontece é que o Arquiduque desde 1803 era aluno de Beethoven, e passou rapidamente a ser amigo e patrocinador do compositor. Este não perdeu a oportunidade de homenagear e levemente adular seu patrono: quando o Arquiduque partiu de Viena, Beethoven escreveu uma sonata para piano intitulada "Das Lebewohl" ("O Adeus"), que acabou por constituir o Op. 81a. do compositor, e ser conhecida por seu nome francês, "Les Adieux". Esta sonata, hoje uma das mais famosas do conjunto das trinta e duas, tem três movimentos, e cada um pretende retratar um momento específico. Beethoven intitulou os movimentos de "O Adeus", "A Ausência" e "O Retorno", referindo-se  ao Arquiduque, sendo o segundo movimento melancólico e o terceiro muito festivo, obviamente. Beethoven sabia que, infelizmente, até para um compositor de seu porte manter uma certa política com a nobreza era algo importante para a carreira. Eis esta bela sonata, para quem não conhece, nas mãos de nossa Guiomar Novaes:



Beethoven por volta de seus 30 anos

Beethoven escreve sobre os três primeiros acordes 
as três sílabas da palavra Lebewohl. Numa masterclass,
Alfred Cortot lança a idéia de que esse "adeus" foi 
na verdade para sua amada imortal... Faz todo sentido!




Mas, afinal, e o Banco do Brasil? Ora, chegando ao Brasil, D. João VI passou a tomar uma série de medidas políticas e sócio-econômicas que foram de grande importância para o desenvolvimento da colônia que muito em breve tornaria-se independente. Uma dessas medidas foi a criação do Banco do Brasil, ainda em 1808.

Concluindo: se não houvesse um Napoleão sedento de poder, haveria uma Sinfonia "Bonaparte" e não uma "Heróica", provavelmente a história do Brasil seria bem diferente, talvez não tivéssemos esse Banco do Brasil, o arquiduque não fugiria e não existiria a "Les Adieux". 

Conexões históricas são algo realmente fascinante.











19 de fevereiro de 2012

A Lira

A origem da idéia (ou necessidade) de fazer soar cordas presas a um ressoador de madeira parece se confundir com a própria idéia (ou necessidade) de "fazer música" com um instrumento.

A lira, que é um dos instrumentos mais antigos produzidos pela engenhosidade humana, acabou por tornar-se um dos grandes símbolos da própria música, e por conexão, da própria poesia. Música e poesia, em essência, são uma única arte lírica, e por imemoráveis tempos foram vistas, entendidas e sentidas como uma entidade única. 

E é por isso que os poetas também cantam, e os músicos também falam.








Banville nos disse:

Nuit d'étoiles, sous te voiles,
sous ta brise et tes perfums,
Triste lyre qui soupire,
je rêve aux amours défunts...

E Bandeira:

...Só tu não vens trazer alívio ao trovador,
Que vai tangendo apaixonado
As cordas da triste lira
Que suspira desmaiando,
Suplicando teu amor. 

E assim são as liras, sempre melancólicas e suspirantes, evocando amores que se foram, ou suplicando por amores que ainda não vieram. E o lirismo que tão comumente fala de amor continuará sendo eternamente a essência da poesia e da música, música que a tudo se refere, sem falar exatamente sobre nada, etérea como é etéreo o soar de uma corda da lira.

Suspira, minha lira, e nos deixemos falar sobre música.